segunda-feira, março 27, 2006

O Encontro

Quinta-feira. Estamos entrando numa casa antiga, no centro ou em qualquer outro bairro dos arredores da amada Porto Alegre. Cidade Baixa, de preferência. Ela é alugada... bem, talvez. Podemos sentir o pó entrando em nossos pulmões e o cheiro do mofo é sensual nesse momento.

Percebemos que no final desse corredor há uma pequena sala de jantar. As louças estão postas sobre a mesa. Pratos. Copos de cristal. Talheres com o brilho da prata. Candelabros sem velas. Só há duas cadeiras... ele sabia que estaríamos aqui. Provavelmente ateou fogo nas outras. O dia ainda está claro, devem ser umas dezesseis horas, talvez dezessete. Uhm-hum... são extamente dezessete e cinqüenta e três, segundo o cuco da parede aonde também está pendurado um imponente espelho, refletindo toda tua curiosidade.

Todas as luzes estão apagadas. Não por opção, creio. Tudo parece marrom. Bege. Amarelo. É... quase tudo tem cor de tabaco e está iluminado pelos raios de sol que penetram através daquela cortina que o vento está soprando, de leve, em nossa direção. A escada que subiremos agora também tem cor de tabaco e o final dela é escuro. Fico tonta com escadas em caracol e dias meio mornos como este.

Enxergamos cinco portas. Cinco diferentes aventuras. Não sou boa com probabilidades reais e eu tenho que acertar a porta que não nos acusará de intrusos. Seguirei minha intuição e entrarei na porta que é a do banheiro. Quero ver quais porcarias ele toma.

As toalhas estão totalmente secas, a pia também. A tampa da privada está fechada e não há cheiro algum além do sândalo que vem do cesto que acabei de abrir para ver o que haveria dentro. Havia sândalo, e só. A banheira está manchada e o chuveiro é de metal. Vários sabonetes estão espalhados pelos cantos e nenhum foi recentemente aberto.

Nenhum remédio. Ele os esconde. E para minha surpresa a escova de dentes é nova. Colgate, loção pós-barba e pente de plástico verde. Temos sorte. Apesar de velhas, as portas não fazem ruídos.

Reparemos, agora, no carpete ocre e imundo. Sobre ele estão algumas partes de uma locomotiva de brinquedo. Deve ser dos anos oitenta. Vagões. Trilhos. E os trilhos são cinzas. Ele os derrubou levando uma caixa para o sotão.

Coisas sobre o amor passaram pela minha cabeça, agora. Sei que eu o amarei daqui a alguns minutos. Tenho certeza do que vamos encontrar. Sonhei com tudo isto e meus sonhos não mentem. Sei que estamos na casa certa. O número era nítido.

Estou ansiosa. Vamos direto à porta entreaberta, lá nos fundos. A porta está pintada de preto e é de madeira. Uma luz muito, muito fraca está saindo por ela. Sem fazer um som, eu a empurro... e voilá. Lá está ele, como eu imaginava.

TE APRESENTO O MEU AMOR.

O quarto está somente iluminado por uma vela e a vela está quase no fim, sobre a mesa. A mesa e a cadeira... lá no canto. Gavetas trancadas à chave. Papéis que parecem ser amarelos. Sem linhas, please. Um cigarro está aceso e o cheiro é excitante. O nanquim que ele insiste em usar... quase no fim.

Ele está de costas para mim, sentado na cadeira e parece escrever algo... céus... meu poeta.

Porém, antes de chegarmos perto dele para conhecermos o seu rosto, vou admirar um pouco a cama que, em breve, usaremos para esvaecer. Ah... nossos desejos. Nossas mais devassas fantasias... aos lados da cama não há coisa alguma além de roupas sujas e junk food da semana passada. Ela, digo a cama, cheira ao suor dele e agora, graças a mim, respira aliviada. Sabe dos sonhos que ele tem tido.

Chegou a hora. Começo a percebê-lo melhor. Ele tem cabelos pretos, brilhantes e ondulados. Veste calças de veludo roxo e os suspensórios caem quase até o chão. É magro, alto... posso ver o relevo construído pelos ossos dos seus ombros, braços... dos pés também. Ele é amaldiçoadamente branco e as poucas sardas das suas costas formam o desenho da contelação de Escorpião.

Ele larga a pena como se estivesse queimando os seus dedos e então leva as mãos à testa, deslizando-as pelos cabelos até à nuca. A aperta com desespero e força. Olha para o teto e se joga ao encosto da cadeira.

Já é o bastante. E para nós dois.

Enquanto eu chego mais perto, tu ficarás bem aí.

Agora ele pega a garrafa do líquido verde e toma mais um gole. Sinto o cheiro e fico aquecida. Encanto. Ele escuta os meus passos mas não se mexe. Paro ao lado dele. Acabo de avistar a navalha. Não imaginávamos. Sorrio.

- Demorastes!

- Não, não demorei.

Nesse momento ele abre o sorriso mais iluminado sem ao menos ter olhado em minha direção.

Continua olhando para a carta e a carta zomba dele, agora.

A rasga, com energia.

Nos olhamos.

Nos achamos.

Agora nos dê licença.



-26.01.2006-

sexta-feira, março 24, 2006

No caminho da farmácia

Num dia cheio de cores,
esbarrei num dos meus amores.
Ele estava molhado
e precisava ser secado.

Ele é sensível e fraco,
vive pegando resfriados
e teima recordar
dos meus dias passados.

Insisto e digo de novo
que andar nessas chuvas
faz dele um grande tolo.

Ele ri de mim e diz:
- Tenho que me molhar e
aprender sozinho a me curar.



-02/2006-

Boato

O aperto no peito não passou o dia inteiro. Não é a asma que sempre desejou ter para usar aquelas bombinhas legais. Ela sente vontade de agarrar cada moço-de-cabelos-e-olhos-pretos que passa pela sua frente. Como se fosse adiantar. Desse jeito, acho provável que ela não tenha mais solução.

- Veste toda roupa branca que tu tens, guria. Se não curar parecerá, ao menos, que estás preocupada em esconder tuas vergonhas.

Eu sei cada palavra dos pensamentos que ela anda tendo. E são nada bons. Engraçado, ela sempre foi uma menina santa, até já fez comunhão. Mas as vizinhas disseram que ela ainda não se confessou esse ano.

- Aquela pervertida...

Os meninos sonham em tê-la mas ela não percebe. E, como se fosse desaforo, fica dizendo a si mesma que é um inseto. Diz isto todo dia antes de dormir. Cega. Mateus a teve noite passada, em pensamentos. Se ela soubesse do seu interesse, por necessidade faria algo para se aproximar.Talvez calçaria sapatos vermelhos. Porém antes, teria que conhecê-lo. Ela, no fundo creio, ainda não está totalmente enlouquecida.

Eu vejo o esforço que em todos os sábados é feito para que consiga ficar em casa apenas lendo um romance, como se fosse um disfarce para esconder a neblina abaixo das suas saias. Uma pena ter sempre bom juízo.

Alguém melhor a dirá que o que está sofrendo é apenas consequência das idiotices que andou falando. O aperto no peito dela, como tu já deves ter notado, é só o ardente e sem futuro sentimento por Lucas, um estúpido, preso no ar dos pulmões.



-15.01.2006-

terça-feira, março 14, 2006

Tempo #2

A seu tempo, deixa o tempo passar...
um dia verá que já se foram
809 anos e
você continua flutuando no mesmo velho mar.
Somos tão parecidos que
isto chega a nos amedrontar.
Somos algo que as pessoas não parecem gostar.
Eu nem dou a mínima porque gosto de sonhar.
Mas estou cansada.
Estou cansada dessa casa parada,
desse quarto em branco e dessa luz acesa.
Digo que nisto não há beleza.
Estou cansada desse lápis, desse papel...
tudo bem sem finalidade no momento
apesar de serem o maior apoio para
meus dedos continuarem se mexendo.
Tento esquecer das estrelas que
ousei ver na noite passada
só para não me sentir mais apagada
nesse dia que percebi que no seu amor
eu cheguei um pouco atrasada.
Mas não me sinto culpada.
Então, meu caro, desista logo.
Venha a meu tempo e lhe mostrarei
que o que perdemos
até agora foi nada.



-05.02.2006-

O Plano

No mundo laranja
dos estranhos como nós
falamos falamos falamos
mas nunca ficamos a sós.

Bebendo e despencando
do jeito que gostamos,
odeio estar assim fazendo
rimas idiotas pelos cantos.

O plano era perfeito
um ciúme mui idealizado,
o sonho de me sentir melhor e
desejada por meu amado.

Foi mais uma idéia estúpida
nascida na minha nuca
que jamais curaria
a minha solidão maluca.

Pelo menos descobri que há
nesse mundo meio vazio
alguém assim como eu
um poeta nada sadio.



_______
Para Marcos e seu amigo imaginário, o Hwang.
-04.02.2006-

quinta-feira, março 09, 2006

Formigas

Todas - Ahhhhhhhhhhh!

- Desviem! Desviem!
- Meu grão de açúcar!
- Não teme?!
- Terei que voltar!

Todas - Oh nããããããããããão!

- Vai não!
- É ali no bueiro!
- Continua andando!
- Não... ouço o berreiro!

Todas - Nhinhaaaaaaaaaaa!

- Ai!

(Era aquela pessoa maluca andando pelo cordão da calçada, de novo)